Existe pelo menos um caso que aconteceu com René Descartes envolvendo diretamente uma experiência de sonhos lúcidos. Muitas vezes conhecido como o “pai da matemática moderna” e o “fundador da filosofia moderna”, Descartes é um nome facilmente lembrado e sempre enaltecido por suas gigantescas contribuições para matemática e à filosofia.
Em sua obra “As Meditações”¹, pode-se acompanhar seu ceticismo metodológico compondo um intenso jogo de crítica ao real, no qual busca alcançar alguma certeza ou pelo menos “as primeiras coisas que podem ser conhecidas filosofando”². Advém dessa luta reflexiva o alcance da dúvida como pilar inabalável… afinal aquele que duvida, está pensando e se está pensando, definitivamente existe. Daí a célebre frase: “Penso, logo existo”.
Ao vasculhar material bibliográfico para minhas pesquisas, descobri que Descartes além de ser um exímio sonhador – usava seus sonhos para auxiliar em suas produções intelectuais – também era capaz de ter sonhos lúcidos.
Essa relação de Descartes com os sonhos leva-o a construções argumentativas surpreendentes. Destaca-se como percebeu nos sonhos, a facilidade com que a experiência sensorial pode ser simulada. Para o filósofo francês, pode-se chegar ao ponto de ser praticamente impossível distinguir o estado desperto de um sonho. Vale destacar seu poder reflexivo, o qual era capaz de manter, ainda durante seus sonhos, em especial, seu terceiro sonho da noite de 10/11 de novembro de 1619, quando estava em Ulm, na Alemanha. De acordo com a versão de Adrien Baillet, citada por Marie-Louise von Franz ³, sobre o relato de Descartes:
“Descartes nos conta que estava cheio de entusiasmo e completamente absorvido pelo pensamento de ter, nesse dia, descoberto as bases de uma “ciência maravilhosa”. Durante a noite ele teve três sonhos consecutivos(…).
(…) Logo depois disso, ele teve um terceiro sonho, que não foi tão terrível quanto os dois anteriores.
Nesse último sonho, ele encontrava um livro sobre a mesa dele, sem saber quem o havia deixado lá. Ele o abriu e ficou maravilhado de ver que era um dicionário, esperando que pudesse ser útil a ele. No instante seguinte, outro livro apareceu, tão novo para ele quanto o primeiro e de origem igualmente desconhecida. Ele descobriu que era uma coleção de poemas de diversos autores, cujo título era Corpus Poetarum etc. Ele ficou curioso para descobrir o que ele continha e, ao abrir o livro, os olhos dele pousaram sobre a frase Quod vitae sectabor iter? Ao mesmo tempo, ele viu um homem que ele não conhecia, que mostrava a ele um poema que começava com as palavras “Est et non”, e exaltou a excelência dele. Descartes disse ao homem que conhecia o poema, que estava entre os idílios de Ausônio e estava incluído na grande coleção de poemas que estava sobre a mesa dele. Ele quis mostrá-lo ao homem e começou a virar as páginas, gabando-se de conhecer a ordem e a arrumação perfeitamente. Enquanto ele procurava, o homem perguntou onde ele havia comprado o livro. Descartes respondeu que não poderia dizer como o havia conseguido, mas que, um instante atrás, ele estava com um livro nas mãos que havia desaparecido, sem que ele soubesse quem o havia trazido, nem quem o havia levado embora novamente. Ele mal havia terminado de falar quando o livro reapareceu na outra ponta da mesa. Ele descobriu entretanto, que o dicionário não estava mais completo, sendo que antes, parecia estar. Enquanto isso ele encontrou os poemas de Ausônio na antologia de poetas, que ele estava folheando; mas, incapaz de encontrar o poema que começava com “Est et non”, ele disse ao homem que conhecia um poema mais bonito do mesmo autor, que começava com “Quod vitae sectabor iter?” O homem pediu que ele o deixasse ver, e Descartes estava procurando-o atentamente quando ele se deparou com um número de pequenos retratos – gravuras em placas de cobre – que o fizeram exclamar quanto à beleza do livro; mas não era a mesma edição daquele que ele conhecia.
A essa altura, tanto o homem quanto os livros desapareceram e sumiram do olho da mente dele, mas ele não acordou. O impressionante é que, estando em dúvida se essa experiência era um sonho ou uma visão, ele não apenas decidiu, enquanto ainda dormia, que era um sonho, como ele também o interpretou antes de acordar.
Ele concluiu que o dicionário significava a conexão entre todas as ciências e que a coleção de poemas, intitulada Corpus Poetarum apontava especial e claramente para a união íntima da filosofia e a sabedoria. Pois ele pensou que ninguém deveria se surpreender de descobrir(…).”
Referências Bibliográficas:
1 -DESCARTES, R. Discurso do método, As Paixões da Alma e Meditações (Coleção Os Pensadores, vol. Descartes). São Paulo: Nova Cultural, 1999.
2 – HUISMANN, Denis, Dicionário dos Filósofos. São Paulo – SP: Martins Fontes, 2004.
3 – FRANZ, Marie-Louise von, Sonhos Um Estudo dos Sonhos de Jung, Descartes, Sócrates e outras figuras históricas. Petrópolis – RJ: Editora Vozes, 2011.
Amei o post, estava querendo muito ler algum sonho lúcido de Descartes, além da questão de sua grande criticidade outra coisa que acredito ter colaborado muito para esse sonho lúcido foi o seu costume de anotar os sonhos 😀
Verdade, ele tinha essa proximidade com os sonhos e usava eles para auxiliar na formulação de suas teorias.
Me obrigo a elogiar os novos layouts do site, estão realmente muito bonitos, meus parabéns gostei demais 😀
Obrigado Renan! Seja sempre bem-vindo!